Brasília, 31 de março de 2019.
Para você.
Logo, nunca poderemos dizer: não há nada para ver, não há mais nada para ver. Para saber desconfiar do que vemos, devemos saber mais, ver, apesar de tudo. Apesar da destruição, da supressão de todas as coisas. Convém saber olhar como um arqueólogo. E é através de um olhar desse tipo – de uma interrogação desse tipo – que vemos que as coisas começam a nos olhar a partir de seus espaços soterrados e tempos esboroados (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 61).
É uma questão de temporalidades, sobreposição entre os tempos: cria-se uma intimidade com as imagens, não com todas, é verdade, mas com algumas imagens, que nos convidam, em um movimento de aproximação e distanciamento entre as pessoas, as poéticas, os processos, as obras. De fato, nós olhamos para as coisas do mundo e as coisas nos olham, esta narrativa é completamente absorta de leituras de textos de Georges Didi-Huberman, cuja escrita tem me feito esse convite do olhar, como ser que olha e é, também, olhada.
Em um convite de poucos dias atrás de Lynn Carone e Fernando Pericin, me debrucei em um processo de absorção das correspondências trocadas entre eles, imagens das obras e de trocas de mensagens com Anna Cristina Araújo Rodrigues. Considero que cada um dos elementos ali disponibilizados são imagens – cada ato como processo imagético de criação e fruição –. A partir desses encontros criei uma intimidade própria com aquilo que me era apresentado, em meio a imagens ali disponibilizadas e imagens que criei a partir do meu repertório.
O exercício a mim colocado, por vontade própria, era constituir e restituir aquilo que atravessou o meu olhar e me tornou parte do todo, me vi ali com eles, no processo de feitura e dialética das imagens. No ímpeto de definir o que vi, os considerei colecionadores, com base nas escritas de si, em suas classificações, enquadramentos e utilização de materiais e linguagens. Isto ficou ainda mais evidente com a oportunidade de me corresponder com Anna, cujas epifanias sobre as imagens e as correspondências dos dois artistas me provocaram o olhar quanto a poética reminiscente colecionadora, de que ali o vestígio por meio das imagens e das correspondências trocadas são testemunhos em processo intermitente, em sobreposição entre os tempos:
Fernando explica, no projeto, que as flores definham […] Lynn fala na invenção da fotografia e se questiona sobre a possibilidade de se segurar o tempo, ainda que sob pena de tornar tudo artificial […] E a Lynn, que sinceridade desconcertante quando revela que produz mirantes para espiar a cidade desconhecida que de repente se tornou sua casa! Mas ela é danada: vê cada coisa linda e colorida nesta cidade, registra os reflexos e a duplicidade dos objetos, sobretudo, desvenda a fórmula do tempo: Fe + H2O + O = ferrugem! […] Fernando, Lynn, você e eu, o que temos feito é exatamente esse exercício: olhar para os objetos, registrá-los, buscar neles a história infinita do mundo e perceber relações entre coisas materiais e imateriais, diferentes na aparência, feitas de matérias diversas […] Olhar aqueles carros enferrujados, aquelas flores que fenecem, as nuvens e também os reflexos de objetos no vidro que reveste um prédio ou na água – tão fugazes – não pode se reduzir a uma única vez. É preciso voltar e olhar mais, mais, mais [grifo meu].
A captura do tempo. Foi a partir desse sentido que me vi entre as narrativas, nas imagens e correspondências. Por meio das mensagens trocadas com Anna, eu pude descrever a sugestão e a captação da poética pelo meu olhar, circunscrever os tempos possíveis em minha leitura e inscrevê-los como colecionadores – escrever sobre esses colecionadores é resenhar o processo de percurso do meu olhar.
Lynn e o seu herbário com a flora coletada, com nomes e desenhos científicos, recortes de jornais, e com os enquadramentos, em sua construção rochosa, inscreve a sua passagem pelo espaço e pelo tempo, uma colecionadora ávida por paisagens. Vi pelas frestas e pelos recortes singulares de palavras e imagens a sua resistência e existência, sob as pedras e a flora pelo – no – caminho. A princípio, vi um sentido não-linear na construção das imagens, em processo, é como narra Fernando, em sua primeira correspondência destinada a Lynn, “O desejo de devanear e buscar imagens e histórias não morre […]”, o devaneio é mencionado por ele e por Lynn – ela menciona o devaneio como reflexão, na terceira correspondência – como um método de processo: buscas incessantes, que tem pausas, cujo desejo se esvai em determinados momentos, como afirma Fernando. Mas, retorna.
Fernando, colecionador de paisagens, na luz e nas transparências, entre nuvens, feixes de luz, reflexos e a iminência da morte das coisas, entre a configuração do que foi e do que agora é – este aspecto também está presente no trabalho de Lynn, vide a trajetória percorrida com o herbário desde a sua coleta até as lâminas, assim como as fotografias de carros com ferrugens –, não como uma ameaça, mas como uma condição própria. As imagens são fantasmagóricas: as flores que estão em seu processo de finitude; as nuvens captadas em formas diversas, sem repetição; as imagens de prédios, na transparência da vista de outros prédios, como miragens; a luz noturna, onda e movimento encerrado, mas capturado no enquadramento. No fundo, tudo é sobre o tempo e o (des)encontro entre a coleta memorável.
Lynn e Fernando são colecionadores de detalhes sobre o tempo. As correspondências provocam simbioses nas escritas de si [deles e minha], na junção das temporalidades, na coleta, na feitura de imagens. Em mensagem enviada a Anna, escrevo “Imagino o ato de trocas em correspondências, numa busca de dar sentido ao que o outro lê e ao que lê, ato de sobrepor e escrever sobre. É exatamente o que fazemos aqui. Encontrar caminhos e trajetórias possíveis para o que nos olha e o que olhamos”… e “ […] menciono historicizar não [em um] tempo cronológico linear, mas um tempo percorrido entre ir, voltar, escolher, voltar ali novamente por meio das fotografias e assim por diante. Eles criam o seu próprio tempo em meio a formas, cores, objetos e cartas trocadas”. Eu também criei, em momentos solitários e junto a Anna. Se possível, quero mais, ver mais compartilhar mais, buscar mais… incessantemente, com algumas pausas.
Sinceramente,
Anna
[Anna Paula da Silva]
Referência
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.