A partilha sensível do espaço e das idéias que tem lugar em um ateliê dividido por quatro artistas transposta para três outros lugares, completamente distintos entre si e do próprio ateliê onde o projeto de ocupação destes três outros espaços foi gestado. A ideia, inédita – a meu ver (há muitos projetos que são iniciativa de grupos de artistas e há muitas iniciativas que propõem a tomada de posição e de espaço nos interstícios do circuito de arte, digamos assim, mas desconheço um trabalho de ocupação artística periódica de diferentes lugares por um mesmo grupo de pessoas com potencial de se estender e se sistematizar refletindo constantemente sobre as etapas anteriores e seguintes)–, ganha corpo a partir do dia 7 de novembro, com a abertura do Capítulo 1 desta narrativa –que tem começo e meio, mas fim indefinido – no Centro Histórico Mackenzie com obras das artistas Carol Seiler, Helena Kavaliunas, Lynn Carone e Natasha Barricelli. O que era de caráter privado –o cotidiano de um ateliê compartilhado– vem à tona na forma de três exposições concebidas pelas quatro e embasadas também na partilha sensível do espaço e das ideias, agora tornados públicos (o espaço tornado espaço expositivo e as ideias tornadas obras).
As artistas do Ateliê das Quatro, na Vila Madalena, apresentam ainda no mês de novembro mais duas exposições concebidas coletivamente para espaços expositivos de características diferentes na cidade: Capítulo 2 ocorre no Ateliê 397 e, o Capítulo 3, no Espaço Ophicina. Todas as obras foram pensadas como problematizações do próprio espaço em que estariam inseridas, assim, se para o Centro Histórico as artistas desenvolveram obras de natureza institucional (leia-se obras que necessitam de um espaço expositivo “neutro”, um “cubo branco” para acontecer), para o Ateliê 397, as obras ganharam contorno de site specific e, para o Espaço Ophicina, projetos de cunho conceitual foram gestados para dialogar com o espaço híbrido de uma galeria localizada em um estúdio especializado em montagens e molduras. Ao se fechar temporariamente a narrativa, com o Capítulo 3, é possível fazer amarrações entre os três momentos da produção de cada artista, e também se pode ver um desenho (ou percurso) delimitado peça ação propositiva do Ateliê das Quatro nessa trilogia de fôlego “escrita” em novembro de 2007 na cidade de São Paulo.
7 de novembro
[…]2007 – Noite chuvosa em São Paulo. Condições ideais de temperatura cultural e pressão ambiental para correr para dentro do estiloso Centro Histórico Mackenzie, localizado no campus da rua Itambé, na fronteira entre a região central de São Paulo e o bairro de Higienópolis. A primeira sala traz as janelas fechadas e recobertas parcialmente por um instável muro de tijolos. Pequenos vãos iluminados atraem o olhar para dentro dessa parede úmida erguida de modo a interditar a visão do lado de fora do edifício. As luzes que vêm de dentro do muro são pequenos backlights com imagens do centro histórico, sempre fotografado por meio de frestas: a da própria janela, o arabesco das escadas etc. Trata-se da intervenção de Lynn Carone, que esconde e revela ao mesmo tempo os segredos do espaço: impossibilitando olhar através da janela, traz o olhar para dentro, para os detalhes arquitetônicos, para a luminosidade que habita aquele ambiente.
10 de novembro
[…]2007 – Sábado de sol. No Ateliê 397, o que mobilizou as artistas e pautou as discussões foi o contraste com o espaço “museológico” do Centro Histórico Mackenzie; por se tratar de um espaço expositivo alternativo, “contaminado” pelo cotidiano do seu funcionamento como ateliê e também por elementos arquitetônicos e outras características do espaço, o Ateliê 397 parecia pedir trabalhos de site specific que se relacionassem com o lugar, seus usos e sua história. Assim, cada artista estabeleceu um diálogo estreito com o espaço, sem deixar de lado a coerência interna de sua própria produção e também promovendo diálogos com as obras expostas no Centro Histórico, de modo a escrever um segundo capítulo internamente conectado com o primeiro e pronto a se desdobrar em um terceiro. Lynn Carone escolheu os nichos de um pequeno muro que separa o corredor central do espaço dos fundos do ateliê para instalar imagens fotográficas daquele mesmo muro, a serem “descobertas” nos vãos até então desabitados daquela parede azul…[ ]
…Ao final do percurso, para quem tiver o olhar aguçado, pois aqui não estamos mais diante de um trabalho que salta aos olhos e sim de uma sutil intervenção que demanda um saltar dos olhos, a obra de Lynn Carone convida a “ver através”. Imagens fotográficas ampliadas em superfícies transparentes deixam ver o que há atrás do último muro do 397 e também o que há dentro dele. As fotos, conforme as vamos desvendando, mostram uma investigação detida daquilo que os olhos não captam, da beleza contida em detalhes que costumam ser invisíveis ao olhar apressado. As imagens condensam também uma história do lugar: o muro deve ser demolido após a exposição; uma intervenção realizada por outro artista no local, que uma das fotografias registrou, também será retirada de lá em algum momento, ou seja, a obra de Carone encerra a exposição guardando em delicados receptáculos descobertos no muro a história da própria exposição, que se tratou de observar atentamente o espaço e de fazer o visitante enxergá-lo de novas maneiras.
28 de novembro
[…]2007 – Faz frio em São Paulo. Última parada da trilogia de novembro: Espaço Ophicina, Vila Madalena…
[…] O Ophicina também é ocupado pelas quatro artistas com trabalhos individuais que dialogam com a especificidade do lugar. Cada uma delas utiliza três nichos externos do espaço com uma obra que tem continuidade no espaço interno, onde uma obra de cada artista se “enquadra” em uma moldura previamente desenhada, que é idêntica para os quatro trabalhos. Ambiente menor e mais acolhedor, a galeria do Ophicina coloca necessariamente as quatro artistas para dialogar: a moldura de madeira unifica as obras e permite, ao mesmo tempo, que sejam diferentes a mais não poder.
Solução instigante para uma situação de mostra coletiva: ninguém precisa modificar seu trabalho para caber melhor na exposição; partindo de uma regra comum, cada uma tem espaço para ousar como quiser[… ] Lynn Carone mostra uma absoluta coerência com as duas exposições anteriores, provocando uma vez mais a experiência de “olhar através” das coisas, dessa vez, somando um detalhe da porta do Espaço Ophicina ao contexto “escondido” atrás de um voile que separa a sala de exposições do ambiente do escritório. A exposição deixa uma vontade imensa de acompanhar os próximos capítulos que as artistas certamente vão escrever.
por Juliana Monachesi ( crítica de arte, SP)