SOBRE O PROJETO CORRESPONDÊNCIAS
Diz Manoel de Barros:
Estas latas têm que perder, primeiro, todos os ranços (e artifícios) da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e quatro anos elas merecerão ser chão. Esse desmanche em natureza é doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos vermes.
Latas, pedras, flores, nuvens… à sua maneira, cada uma resiste ao tempo, depois todas desintegram. “Esse desmanche em natureza é doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos vermes”.
Quem ama Manoel de Barros sabe que a sociedade dos vermes é o reino onde latas enferrujadas namoram com as borboletas, são alçadas a morada de caracóis e estabelecem uma relação de intimidade com moscas e abelhas. Criam limo e musgo, sem os quais não podem dar flores. “Elas ficam muito orgulhosas quando passam do estágio de chutadas nas ruas para o estágio de poesia”.
Lynn e Fernando capturam imagens de objetos e seu desmanche. Eles sabem da existência da sociedade dos vermes, aquele mundo em que tudo que fenece, em verdade, está apenas passando de um estágio a outro – o da poesia, da arte, do sublime.
Essa passagem só é possível no tempo. E o tempo pede atenção para gestar a memória. O tempo é muito exigente. Não se revela facilmente, nem se expõe didaticamente. Acumula-se em camadas e deixa pistas em forma de dobras, rugas, ferrugem, cascas, pétalas murchas, cacos, ossos, fósseis, pegadas, fumaça, reflexos, traços, cores. Todos esses sinais indicam que ele quer ser compreendido.
Os olhos de um mundo acelerado e desatento não veem nada disso. Veem-se a si mesmos, apenas. O resto é lixo. Perdem, portanto, o melhor da vida: a sensibilidade para olhar as coisas em sua constante mudança.
Flores continuam nascendo, fenecendo e sendo substituídas por flores que também fenecem e dão lugar a outras. Essa eternidade da flor, como a dos insetos, assegura a ideia tão necessária a nós da continuidade da vida. Mesmo os objetos fabricados – como latas – definham, mas são seguidos de novos que se substituem num continuum. Nuvens são apenas um estágio de uma matéria, e seu ciclo evolui de fase a fase numa rapidez contrária à das pedras.
As imagens que Lynn e Fernando selecionaram para o Projeto Correspondências desnudam esse processo. Antes de constituírem partes de uma exposição, foram registros nascidos da sensibilidade artística que permite buscar nos objetos a história infinita do mundo e perceber relações entre coisas materiais e imateriais, diferentes na aparência, feitas de matérias diversas, mas que trazem a certeza de que fala Didi-Huberman: “Convém saber olhar como um arqueólogo”.
Concorda Manoel de Barros:
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando ossos. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras.
Não seria esse o mesmo desejo de Lynn e Fernando? De Anna Paula e Anna Cristina? Daqueles que viram no projeto a potência de um apelo à correspondência, à calma, à desaceleração, à memória?
Anna Cristina Araujo Rodrigues