Lynn Carone constrói um ninho onde questões que antes de serem contrárias são complementares como o interno e o externo, a objetividade e a subjetividade, a matéria e o ser. A carga do que projetamos, como por exemplo em um relacionamento, assume o ambiente onírico não só nas fotos, mas principalmente no vídeo Ronda; nele a água que é palco da morte no mito de Ofélia vira celebração da vida.
Muito do que vemos, ou ouvimos, corresponde a padrões estabelecidos em nosso repertório intelectual e cognitivo. Daí a analogia com o mito. Roland Barthes dizia (em Mitologias) que o mito significa uma ilusão a ser exposta, mas que possui sentidos de segunda ordem agregados por convenção social. Procurar desconstruir um mito ou vê-lo de outra forma, não convencional, pode ser mais elucidativo. É exercer um pensamento de possibilidades.
Associamos o mito de Narciso com a vaidade exagerada, com alguém que pensa exclusivamente em si. Pensemos de outra maneira: Narciso é aquele que se projeta diante de algo que lhe atraia profundamente; e não faz isso por vaidade ou por soberba, já que não compreende o que lhe atrai. Por isso se projeta, mergulha no que vê.
Assim é o artista. Seus trabalhos são o lago onde Narciso se vê refletido, onde está projetado, sem saber claramente do que se trata. Ele tem de mergulhar naquilo que cria para se reconhecer. E nisso também difere do Narciso do senso comum: ele não é egoísta, “narcisista”; seu ato de entrega é porque sabe ou deseja que outros também possam se reconhecer no que veem, desde que dispostos a mergulhar.
Desconfie do que vê, desconfie do que ouve.
Marcelo Salles
curador da Casa Contemporânea e crítico independente